quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Será necessário desconfiar ainda mais da douta ignorância dos experts*


POR EDGAR MORIN
Tradução: Edgard de Assis Carvalho



Lamentavelmente nossos dirigentes parecem totalmente ultrapassados: hoje são incapazes de propor um diagnóstico justo da situação e, por isso mesmo, incapazes de propor soluções concretas que estejam à altura dos desafios. 
Tudo se passa como se uma pequena oligarquia interessada
unicamente em si mesma tenha, em pouco 
tempo, assumido os comandos”. 
(Manifesto Roosevelt, 2012)1

     "Um diagnóstico justo” pressupõe um pensamento capaz de reunir e organizar as informações e conhecimentos de que dispomos, mas que se encontram compartimentados e dispersos.

Um pensamento como esse deve estar consciente do erro de subestimar o erro que lhe próprio e, como afirmou Descartes, ignorar que o pensamento contem o erro. Esse pensamento deve estar consciente da ilusão de subestimar a ilusão. Erro e ilusão conduziram os responsáveis políticos e militares pelo destino da França ao desastre de 1940; conduziram Stalin a confiar em Hitler e acreditar que era necessário aniquilar a União Soviética.

Todo nosso passado, mesmo o mais recente, está repleto de erros e ilusões, ilusão de um eterno progresso da sociedade industrial, ilusão da impossibilidade de novas crises econômicas, ilusão soviética e maoísta, ilusão reinante nos dias atuais de que a única saída da crise reside na economia neoliberal, ela mesma produtora dessa crise. Reina, igualmente, a ilusão de que única alternativa se encontra entre esses dois erros, o erro de que o rigor é remédio para a crise, o erro de que o crescimento é o remédio para o rigor.

O erro não implica apenas uma cegueira a respeito dos fatos. O erro reside em uma visão unilateral e redutora que não enxerga senão um elemento, um único aspecto de uma realidade que, em si mesma, é simultaneamente una e múltipla, isto é, complexa.

Tudo isso é lamentável. Nosso ensino que nos fornece amplos e múltiplos conhecimentos, nada ensina sobre os problemas fundamentais do conhecimento que são os riscos do erro e da ilusão. Também não ensina nada a respeito das condições de um conhecimento pertinente empenhado no enfrentamento da complexidade das realidades.

Nossa máquina de fornecer conhecimentos tornou-se incapaz de nos fornecer a capacidade de religar os conhecimentos, fato esse que produz miopias e cegueiras nos espíritos humanos. Paradoxalmente, a separação sem ligação dos conhecimentos produz uma nova e douta ignorância de amplas proporções que se dissemina entre experts e especialistas cuja pretensão é esclarecer os responsáveis políticos e sociais.

Pior que isso, essa douta ignorância é incapaz de perceber o terrível vazio do pensamento político e isso não apenas em todos os partidos políticos da França, mas também na Europa e no restante do mundo.

Principalmente nos países da “primavera árabe”, mas também na Espanha e nos Estados Unidos, vimos uma juventude animada por aspirações extremamente justas à dignidade, à liberdade, à fraternidade. Essa juventude dispõe de uma energia sociológica que foi perdida pelos mais velhos domesticados ou pelos resignados. Vimos que essa energia dispõe de uma inteligente estratégia política que foi capaz de derrubar duas ditaduras. Mas vimos também essa juventude dividir-se, constatamos a incapacidade dos partidos com vocação social de formular uma linha de ação, uma via, um projeto e, por toda parte, presenciamos novas regressões no próprio interior das conquistas democráticas.

Esse mal generalizou-se. A esquerda é incapaz de extrair de suas fontes libertárias, socialistas, comunistas um pensamento que responda às condições atuais da evolução e da mundialização. É incapaz de integrar a causa ecológica necessária à salvaguarda do planeta. Os lamentáveis progressos da ideologia de Vichy, que foi imposta pela ocupação estrangeira, impõem à desorganização do povo republicano de esquerda, o poder de uma França reacionária como ocorreu na segunda guerra mundial.

Nosso presidente de esquerda de uma França de direita não pode recair nas ilusões da velha esquerda, nem perder qualquer substância recentrando-se na direção da direita. Ele está condenado a se voltar para o futuro. Mas esse fato requer um profunda reforma da visão das coisas, ou seja, da estrutura do pensamento. A partir de um diagnóstico pertinente, isso requer uma linha de ação, uma via, um projeto que reúna, harmônica e sinfonicamente, as grandes reformas que, interligadas, abririam uma nova via.

Esbocei uma proposta do que poderia ser essa linha, essa via tanto em A Via, quanto em O caminho da esperança, esse último escrito em colaboração com Stéphane Hessel, ambos publicados em 2011 pela editora Fayard. [O Caminho da esperança foi publicado no Brasil em 2012, A Via tem edição prevista para 2013, ambos pela editora Bertrand Brasil, Rio de Janeiro].

Gostaria principalmente de indicar aqui que a oportunidade de uma reforma do conhecimento e do pensamento encontra-se atualmente presente. O recrutamento de mais de 6000 professores deve permitir a formação de professores de um tipo novo, aptos a tratar os problemas fundamentais e globais ignorados por nosso ensino: os problemas do conhecimento, a identidade e a condição humanas, a era planetária, a compreensão humana, o enfrentamento das incertezas, a ética.

Sobre esse último ponto, a ideia de introduzir o ensino de uma moral laica é, ao mesmo tempo, necessária e insuficiente. A laicidade do inicio do século XX era fundada na convicção de que o progresso era uma lei da história humana e que ele era acompanhado do progresso da razão e do progresso da democracia.

Sabemos hoje que o progresso humano não é certo nem irreversível. Conhecemos as patologias da razão e podemos taxar de irracional tudo o que existe no mundo das paixões, mitos, ideologias.

Devemos retornar à fonte da laicidade, típica do espírito do Renascimento, que reside na problematização e devemos também problematizar o que era considerado solução, ou seja, a razão e o progresso.

O que, então, falar da moral? Para um espírito laico, as fontes da moral são antropossociológicas. Sociológicas no sentido de que comunidade e solidariedade são, ao mesmo tempo, fontes da ética e das condições do bem-viver em sociedade.  Antropológicas no sentido de que, em si mesmo, todo sujeito humano é portador de uma dupla lógica: uma lógica egocêntrica, que o coloca no centro de seu mundo, e que o conduz ao “antes de tudo eu”; uma lógica do “nós”, ou seja, da necessidade de amor e de comunidade que já existe no recém-nascido e que irá desenvolver-se na família, nos grupos de pertencimento, nos partidos, na pátria.

Estamos em uma civilização na qual as antigas solidariedades degradaram-se, a lógica egocêntrica desenvolveu-se extremamente e na qual a lógica do “nós” coletivo subdesenvolveu-se. Por essas razões, é necessária uma educação de outro tipo; uma grande política de solidariedade deveria ser desenvolvida, comportando o serviço cívico de solidariedade da juventude de ambos os sexos, a instauração de casas de solidariedade voltadas ao socorro dos mal-estares e das solidões.

Desse modo, podemos constatar que um dos imperativos políticos é fazer tudo para desenvolver conjuntamente o que aparece como antagônico para espíritos binários: a autonomia individual e a inserção comunitária.

Desse modo, também, podemos desde agora perceber que as reformas do conhecimento e do pensamento constituem um preliminar, necessário mas não suficiente, para qualquer regeneração e renovação políticas, para qualquer nova via que possa enfrentar os problemas vitais e mortais de nossa época.

Podemos, enfim, perceber que, nos dias atuais, podemos começar uma reforma da educação por intermédio do conhecimento dos problemas fundamentais que cada um de nós deve enfrentar como indivíduo, cidadão, como ser humano. 


* Texto publicado no Le Monde [Idées], em 1/1/2013. Direitos de tradução no Brasil concedidos pelo autor.

1 Liderado por Stéphane Hessel em 2012 o Coletivo Roosevelt reuniu cerca de 40 personalidades, dentre outras Edgar Morin, Michel Rocard, Gael Giraud, Pierre Larroufou. O Coletivo encaminhou ao presidente François Hollande um conjunto de quinze medidas para serem postas imediatamente em prática após  a posse. A íntegra do manifesto pode ser acessada no sitio www.roosevelt2012.fr. (N.T.).

2 comentários:

  1. Mais um surpresa!A página é muito bonita e está sendo inaugurada com um texto de Edgar Morin escrito para o jornal Le Monde. Adoro ler os artigos de Morin publicados em jornais. O Complexus está de parabéns pela sua nova fase. Abraços

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  2. Que caos! É urgente que incorporemos a problemática da complexidade ao nosso olhar real de cientistas, estudiosos, populares, enfim seres humanos. Hoje se tornou fundamental nos voltamos para esses elementos essenciais do conhecimento. Somente uma sociedade plena e solidária é capaz de se conhecer potencialmente e reconhecer o outro, levando em consideração tudo àquilo que é produzido, contudo sobre uma compreensão diferenciada, ou seja, que leva em conta o valor que o verbo agregar emprega.

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